Lançamento da obra Terra do Bravo de Carlos Enes
Sociedade Filarmónica da Vila Nova
8 de Dezembro, pelas 16h
Lisboa, Casa dos Açores
19 de Novembro, pelas 16h
Esta obra encontra-se à venda na Livraria Virtual e está disponível em http://purl.pt/6271
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Excerto da obra
2
- Quando fores grande, o que é que queres ser? – perguntou o professor.
- Chofer de carro de praça – respondeu o Morcela.
Chofer de praça era para ele a melhor profissão do mundo, que é como quem diz, da ilha. Ir e vir à cidade, ir à Praia e voltar… correr… correr… Depressa se cansou de quilometrar em vão: era muita gasolina perdida para pouco proveito. Quando viu um fato-macaco azul, com os bolsos cheios de ferramentas, decidiu mudar de rumo: electricista, para levar a luz aos confins da terra.
E assim passou dias e dias a seguir o trabalho dos homens. Primeiro, escavaram buracos nas valetas, para instalar os postes; depois, treparam e desceram por eles com uns ganchos de ferro presos nos sapatos, com uma agilidade de macaco; na fase final, esticaram os fios, cortando aqui, atarraxando acolá.
O pai foi de imediato submetido a fortes pressões familiares:
- Olha que fica feio. Queres ficar nas bocas do mundo, no mesmo rol dos pobres da freguesia?
- Eh, mulher, já viste a despesa que vai ser no fim do mês?
- Qual despesa, qual o quê! Monta-se a instalação, mas a luz só se acende quando vierem visitas. Não penses que vou arrumar os candeeiros de petróleo.
Estrear a luz eléctrica no dia da inauguração era um ponto de honra. O coro suplicante das filhas obrigou tio Jerónimo a retirar umas notas da saquinha de pano, escondida debaixo da aba do colchão. Montou uma lâmpada fluorescente na cozinha e um lustre com duas bolas douradas, no meio-da-casa; os restantes quartos ficaram com um globo de vidro branco e a loja com um simples bocal. Mesmo assim, uma fortuna, fora a conta que haveria de chegar, pontualmente, no fim de cada mês. Era o progresso a entrar-lhe pela porta e o dinheiro a voar pela janela. Jerónimo do Poço não se lamentou e, em pouco tempo, o petróleo passou à história.
Uma vez mais se cumpriu a vontade de tia Mariana. Na pia baptismal, tomara água benta e presunção em quantidade suficiente para um século de vida. Quando punha os pés na rua, mesmo para as voltinhas de pouca circunstância, enfiava o colar de ouro, erguia a cabeça e caminhava toda hirta com ar de fidalga, concentrada no eco dos seus passos.
Assumia atitudes de general a passar revista às tropas, sempre que alguém da família saía de casa. Os filhos não a deixavam fazer muita farinha: “Até logo, minha mãe!” e escapuliam-se pela porta do quintal; o marido não tinha a mesma sorte: “Muda essa camisa e esse casaco”, reparos tão mesquinhos que lhe tiravam o gosto e a vontade de sair.
Gabava-se de os trazer sempre aperaltados, com botas feitas no sapateiro, e calças sem fundilhos remendados. Ainda estava para nascer quem andasse mais asseado do que eles. E não deixava de ter alguma razão. O que mais havia era lavradores e rapazes de pé descalço, coberto de crostas tão resistentes como a sola de um sapato. O Morcela sempre lhes invejou a liberdade, mas depressa desistiu de ser como eles. No Inverno, parecia uma cabra peada, com os dedos encarapinhados e cheios de frouvas; no Verão, assemelhava-se a um chimpanzé saltando de galho para galho. Envergonhado com a triste figura, apantufou-se na condição de privilegiado.
- A vaidade de tia Mariana colou-se como goma na saia rodada das suas meninas: não dispensavam vestidos modernos feitos na costureira e sapato de verniz, quando a cerimónia o exigia. As duas pareciam umas bezerrinhas da folia, caminhando lado a lado, carregadas de adereços. Por isso, eram conhecidas como a Galanta e a Benfeita. Filomena, a mais velha, continuou a merecer ao longo da vida o primeiro atributo: uma beleza quente e desconcertante para os padrões do meio, que deixava os rapazes amedrontados. Amélia, à medida que foi crescendo, perdeu a graça da infância, por causa das pernas curtas e arqueadas.
O espalhafato, exibido para o exterior, não correspondia à atitude somítica nas despesas caseiras. Da mercearia, tia Mariana só arrolava o indispensável. Quando se excediam no consumo do açúcar ou do queijo-de-peso, o sermão fervia nas orelhas. Enchia-lhes o bandulho com pratos de sopa de pão, abóbora, feijão e favas. As galinhas, o porco e os coelhos, que tio Jerónimo caçava, davam conduto para o ano inteiro. Em casa de ferreiro espeto de pau: carne de vaca… só em dias de festa.
TERRA DO BRAVO, Carlos Enes
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